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“Cinquenta e sete anos.” Foi a resposta do artista Mark Rothko quando lhe perguntaram quanto tempo levara para pintar um quadro que acabara de terminar. Com essa referência João Paulo Alqueres descreveu o momento em que se viu com o poder de decidir o rumo da sua carreira. Não que ele tenha demorado mais de cinco décadas. Tampouco foi muito mais rápido, como os cabelos brancos que lutam para se tornarem sócios majoritários da sua cabeça insistem em demonstrar. Ele queria dizer que aquele era o resultado de sua história de vida.
João é um cara enorme, mas não é só pelos seus 1,96 metro. Trabalhamos juntos por um período na TOTVS, a gigante de tecnologia nacional e certa vez, ao chegar ao novo escritório no bairro do Itaim, ouvi sua voz já entre a recepção e o salão aberto, que tinha dezenas de baias de trabalho. Ele chamava a atenção de todos os presentes, que por sorte não eram muitos naquele momento. Mas seu alto tom não era proposital. Estava tão investido em sua videoconferência com um cliente, que foi incapaz de notar sua produção de decibéis. Tampouco se esforçava para ser notado pelo fundador e então presidente da empresa, Laércio Cosentino, cuja sala, com a porta estava a menos de cinco metros das suas sonoras cordas vocais. “Eu me sinto como dono do negócio, qualquer que seja a empresa na qual estou trabalhando” é provavelmente a explicação para aquele momento de imersão tão profunda que chegou a me causar vergonha. Não me lembro se eu mesmo o alertei, ou se alguma outra pessoa o fez, mas aquele momento formou, para mim, a imagem de um cara que não consegue esconder o tamanho do profissional que é em uma pequena baia de escritório.
Logo que entrou na faculdade em 1997 sua curiosidade sobre a novidade que era a internet o levou a aprender a programar para entregar um projeto de estágio. Ele se tornou o que chamou de “aquele sobrinho que faz sites” e aproveitava as oportunidades, que surgiam por essa fama, para ganhar dinheiro. Mas via esses trabalhos como secundários na sua carreira. Ingressou na Accenture, uma grande empresa de consultoria, que se tornou sua ocupação principal por nove anos.
João é um cara de poucas e intensas amizades. Na consultoria se tornou amigo de um casal que lhe pediu fizesse um site para seu casamento. Era uma satisfação fazer um projeto pessoalmente tão importante para pessoas queridas. A noiva, cheia de idéias inovadoras, achava que ele deveria transformar isso em um negócio, desenvolvendo algo que pudesse reaproveitar e vender para outros casamentos. A novidade tinha um tempero que fazia João salivar, mas a ideia de oferecer um produto para alguém, por outro lado, o deixava com a boca seca. “Eu não era o cara que vendia sanduíche natural na escola”, lembra. Estava mais para o funcionário exemplar, que se empenhava em fazer o melhor possível tudo aquilo que lhe era demandado. Esse é o senso de responsabilidade que as empresas tipicamente pregam, não é? É assim que se cresce na carreira. Então, fazer algo que não era o seu empregador estava pedindo não era natural, e fazer disso um negócio era o tipo de idéia que o deixava inquieto na cadeira, mas os amigos achavam que ele deveria, e ele o fez.
A Grinalda, como veio a se chamar, foi pioneira no ramo de sites de casamento e João chegou a empregar parentes e até a namorada. Mas ele não tinha experiência de gestão e “não tinha clareza para investir e fazer a empresa crescer”. Como sua ocupação principal ainda era a consultoria, chegava às dez da noite do trabalho e ficava até as três da manhã trabalhando nos sites.
Em uma dessas madrugadas, acordou com a cara esmagando o teclado do seu computador. Levou seu rosto quadriculado à pia mais próxima, jogou água fria e se olhou no espelho. Ele não aguentava mais fazer aquilo, sentia que não sabia, que não estava certo e que não queria mais. Entregou o site do trigésimo casamento como seu senso de responsabilidade mandava, e voltou a focar somente na sua carreira de consultor.
Foi se dedicando a ela que foi contratado como gerente na TOTVS. Sua dedicação o levou a crescer na empresa. Até que sua reputação lhe rendeu um projeto complexo demais, para o qual não estava preparado. Cometeu erros, mas se esmerou e conseguiu concluí-lo. Em uma sexta-feira, sentiu tudo escurecer à sua volta quando recebeu a notícia de sua demissão. De repente, somente aceitar as missões que lhe eram designadas e se empenhar para cumpri-las não foi suficiente.
No final de semana, por várias vezes, se pegou olhando para o nada, com uma sensação de quem levou um soco do Mike Tyson na cara. Já tive que demitir muita gente, e sempre penso que fazer isso em uma sexta-feira pode ajudar a suavizar o gosto amargo dessa luva de boxe nos lábios. Para João, o tempo de relaxar com a esposa o ajudou a pensar com auto-compaixão sobre onde tinha errado. Mas se castigava mentalmente ao olhar para ela e ver a barriga que carregava seu primeiro filho.
A segunda-feira chegou e o despertador tocou no mesmo horário de sempre. João demorou alguns segundos para se lembrar que não podia mais ir para o escritório. Levantou-se, olhou no espelho e viu um desempregado. Decidiu que começaria a trabalhar imediatamente. Mas o que isso significava? “Meu pai, meus tios e tias valorizavam seguir carreira em uma empresa” ele me disse. Então, foi natural para ele esperar que alguém lhe desse um emprego. João sentou-se no computador, atualizou o currículo e começou a distribuí-lo como um soldado com uma metralhadora diante do inimigo. Na sua busca se passaram alguns meses.
Então, um dia, um conhecido o convidou para um projeto de implantação de um sistema da TOTVS em uma universidade. Não era um emprego, mas era a opção que surgiu. Determinado a transformar isso em uma oportunidade de carreira, João colocou o crachá de costume: o de dono. Não só implantou o sistema, como foi convidado para substituir o diretor do departamento de TI da instituição. Seu profissionalismo era capaz de ocupar os espaços como sua voz de encher um salão. E assim se tornou diretor administrativo e em seguida diretor geral, o CEO da faculdade.
Não tinha qualquer bagagem acadêmica, tampouco era isso que a sua carreira exigia naquele momento. Para cada uma dessas posições, ele teve que inventar uma forma de corrigir o que estava errado e resolver problemas que nunca tinha encarado. A universidade não estava em boa situação financeira e sua missão era resolver isso. Estudou e aplicou modelos para otimizar tudo, desde a utilização da sala de aula até a quantidade de professores. Viu-se diversas vezes na posição de quem precisa impor uma sexta-feira desesperadora a alguém.
Cumpriu seu objetivo com tamanha desenvoltura que se tornou desnecessário. Seu perfil consertador não era mais o que aquela instituição precisava. Foi angustiante tentar se tornar o reitor ideal para aquele novo momento e não conseguir. Isso exigiria anos de experiência acadêmica, algo que desta vez não conseguiria cumprir no prazo curto que era preciso.
Assim, uma outra sexta-feira o fez se olhar no espelho novamente. Desta vez, mais maduro, sentiu o grande alívio de quem tira uma universidade das costas. O momento foi encarado com mais leveza, embora tivesse um agravante: sua esposa estava grávida. De gêmeos.
O que se seguiu foram dois momentos que João descreveu como falsos começos. O primeiro em uma escola inovadora, mas que, logo depois de aceitá-lo como executivo, mudou de rumo, fazendo-o voltar uma casa no tabuleiro. O segundo em uma startup de saúde mental cujo caminho ficou incerto demais, frente a uma pandemia mundial, para justificar sua permanência.
Novamente encarou o espelho, mas o que viu foi totalmente diferente. Visualizou no seu rosto não mais o reflexo da sua história familiar, mas as marcas de cada evento de superação da sua própria. Enxergou o sucesso que encontrou quando se desvencilhou do que esperavam que fosse. Quando deixou sua curiosidade e força de vontade o levarem a resolver problemas do seu jeito, surpreendente. Quanta coisa incrível ele tinha sido capaz de realizar sendo autoral. Não havia mais nenhum rótulo em sua testa. No lugar disso encontrou um cara que passou a carreira se inventando, e decidiu fazer isso mais uma vez.
Sentou no computador e deixou seu interesse guiar seu caminho. Ele o levou a desenvolver aplicações para dispositivos de assistentes de voz como a Alexa da Amazon, que estavam começando a entrar no Brasil. Transformou em escritório o quarto “de empregada” do seu apartamento, onde se enfiava para aprender e colocar em prática essa nova habilidade em uma imersão profunda. Daquele casulo onde nascia um empreendedor, saía frequentemente um pai. “Pude cuidar dos gêmeos e aproveitar seus primeiros dias” me contou com a satisfação de quem gostava da responsabilidade de ser uma das engrenagens que fazia a casa funcionar enquanto se reinventava profissionalmente.
Acolher o apoio da esposa em sua licença maternidade foi fundamental para que pudesse começar aos poucos a conceber o que se tornou a Iara Digital, que ajuda empresas a, como a sereia da lenda Brasileira, usar a voz para encantar consumidores através de assistentes como Alexa e Google. Começou oferecendo pequenos serviços e conforme ganhava experiência e notoriedade passou a fazer vendas cada vez maiores.
O tempo pareceu ter voado quando, se barbeando antes de uma live internacional, João enxergou no espelho um profissional de referência em um mercado crescente. Todos os prêmios e reconhecimentos que recebeu das principais empresas do setor foram uma construção sua, sem ninguém pedir.
Até que um dia, uma badalada agência de marketing o contatou, convidando-o para liderar sua frente de tecnologia de voz. “Pensei que ali teria a oportunidade de realizar projetos muito maiores. Talvez fosse muito importante para que eu continuasse sendo uma referência em voz. Mas eu agora era um empreendedor. Não queria deixar de lado a empresa que eu construí.”
O que João decidiu? Não importa. Eu costumo contar a sua história para todos que encontro procurando emprego. O que fez a diferença nela não foi o que ele decidiu, mas o que fez para ter escolha. Quando desistiu de esperar que lhe dessem um emprego e resolveu assumir as rédeas da sua vida profissional, ela se transformou radicalmente. João enxergou a si mesmo como uma startup em busca de um problema para ser resolvido. Transformou-se na solução e com isso criou a oportunidade de voltar a fazer parte de uma organização promissora.
Há pouco mais de dez anos, Reid Hoffman, fundador do LinkedIn lançou o livro “The Startup of You”, onde convida todos os profissionais a se enxergarem e comportarem como startups e assim terem o domínio sobre suas carreiras.
O empreendedorismo de João independe do fato de estar se comportando como dono de sua empresa, ou de outra. Está, sim, em olhar para as demandas reais do mercado, confrontá-las com suas aspirações e trabalhar para ter os recursos capazes de atendê-las. Mohamed Younis, vencedor do prêmio Nobel da paz, acredita que todos somos empreendedores, mas a forma como a sociedade se organizou nos faz esquecer disso e nos acomodar.
Não significa que sejamos todos fundadores de empresas. Não devemos esperar que as pessoas desistam de ter um bom emprego, mas ter a clareza de que o caminho mais efetivo para uma real estabilidade, é o empreendedor. Reid alerta que a falta de ação contém risco. A estabilidade está em se movimentar, desenvolver suas competências e conexões e não no conforto de fazer bem o que já se faz hoje. O mundo dos negócios muda cada vez mais rápido. Mesmo grandes empresas estão buscando se comportar mais como startups para se adequarem a essa realidade. Será que como profissionais não temos que fazer o mesmo?