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Tiger Woods ganhou seu primeiro taco de golfe com 7 meses de idade. Aos 2 anos ele já estava demonstrando seu talento para o golfe na TV. Tiger é o garoto propaganda da “teoria das 10 mil horas”. Ela prevê que para se tornar excelente em qualquer coisa deve-se dedicar por esta quantidade de horas com uma prática concentrada. Logo, deve-se iniciar o quanto antes para poder atingir a excelência na vida adulta. Aos 21 anos de idade, Tiger Woods já era o maior jogador de golfe do mundo. Tendo este exemplo como base, a teoria parece fazer total sentido.
László Polgár, um pedagogo húngaro, fez enorme esforço para provar que a excelência é resultado de especialização e esforço precoce. Ele treinou suas três filhas desde que eram crianças pequenas para se tornarem célebres enxadristas. Polgár defende que esta abordagem vale para qualquer coisa.
Mas David Epstein se aprofundou no tema para refutar a teoria em seu livro Range (título em português: Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas). Como contra-exemplo à criança talentosa e especialista que foi Tiger Woods, Epstein apresenta Rodger Federer. Igualmente talentoso e reconhecido em seu respectivo esporte. Mas Federer seguiu um caminho bastante diferente para chegar em uma posição comparável a Woods. Poucos sabem que quando criança ele praticou diversos esportes. De luta livre a ski, de natação a basquete, passando por tênis, é claro. Será então a especialização e a prática dedicada precoce o único caminho para a excelência?
Para Epstein a questão está no tipo de desafio a ser enfrentado. Especialidades como Golfe ou Xadrez lidam com um ambiente relativamente familiar de aprendizado (o que o autor chama de Kind Learning Environment). Mas para resolver problemas totalmente imprevisíveis (o que o autor chama de Wicked Problems) é necessário conectar referências, experiências e domínios de conhecimentos diversos. Este tipo de amplitude de experiências e conhecimentos (o termo Range que dá nome ao livro) é a arma dos generalistas. A adaptabilidade para encarar ambientes variáveis e problemas complexos.
Mas Federer acabou por se especializar, não é mesmo? Epstein demonstra que, em diversas áreas, a especialização quando ocorre mais tarde, após um período de experimentações diversas, resulta em níveis de excelência e potencial criativo superiores. Além de esportistas, ele analisa estatísticas sobre músicos. Conclui que é muito mais provável se tornar excelente após aprender um terceiro instrumento, que apenas um.
Um outro exemplo muito interessante no campo artístico é Van Gogh. Ele se dedicou com afinco a cinco caminhos de carreira antes de fracassar terrivelmente em cada um deles, até descobrir a pintura. Mas o início da sua carreira artística foi de muita rejeição à medida que Van Gogh não seguia a linha tradicional da arte da época. Ele não era bom em reproduções realistas. Sua amplitude, no entanto, contribuiu para uma abordagem totalmente diferente de arte, que se tornou uma referência para a arte moderna. Se não desafiasse as criticas dos especialistas e perseverasse, ele teria fracassado mais uma vez.
Aí está para mim o ponto central do livro. “Em um mundo de especialistas” diz o subtítulo, é onde mora o problema. Não porque a maioria absoluta da população seja especialista, mas sim porque a sociedade valoriza e preza a especialização. Mais do que isso, cobra especialização e desvaloriza os generalistas. Quantos generalistas sofrem desnecessariamente com a necessidade de se adequar a este mundo, de encontrar algo em que queiram ir a fundo, ao invés de combinar mergulhos de menor profundidade em diversos assuntos e assim inovarem em suas formas de ver estes assuntos em relação aos especialistas.
Eu me identifico com este sofrimento. Meu pai, que acabou lendo o livro ao mesmo tempo que eu, também pode encontrar conforto nas constatações de Epstein. Diversas vezes ele me disse que ele não era especialista em nada, como uma coisa ruim, que ele sentia que o prejudicou. Acreditar nisso, provavelmente foi o maior prejuízo.
Mas Epstein dá outros vários exemplos de quando a especialização pode ser prejudicial. O mais dramático é a histórica cultura de especialização da NASA, que levou ao acidente da Challenger. “In God We Trust, All Others Bring Data” (Em Deus confiamos, todos os outros tragam dados) costumava ser o jargão da agência que precisou reaprender a aprender. Diversos pequenos sinais apontavam para problemas no lançamento da Challenger. Se tivessem sido ouvidos, alguns engenheiros poderiam comunicar uma sensação de que algo não estava certo, que poderia ser investigada e impedir o acidente. Mas a falta de dados concretos, associada a uma pressão cultural de só se manifestar de posse deles, fez com que o lançamento seguisse em frente matando os 7 tripulantes.
Em oposição à superespecialização, o autor apresenta o caso de Gunpei Yokoi, que combinou tecnologias maduras e baratas para criar jogos eletrônicos como o Game Boy. Assim transformou a Nintendo, de uma empresa que fazia jogos de cartas, na líder do setor por diversos anos. A filosofia de Yokoi é chamada de pensamento lateral com tecnologias ultrapassadas. Através dela se reutiliza tecnologia conhecida de novas formas, criando inovação. Esta filosofia é um dos diferenciais da Nintendo até hoje, e mais um claro exemplo de sua aplicação é o console Wii.
Estudando inovação há anos tenho clareza de que ela é fruto da conexão de conceitos e conhecimentos muitas vezes muito diferentes. De fato, os cientistas vencedores de prêmios nobel tem 22 vezes mais chances de ter um hobby fora do trabalho que um cientista típico. Steve Jobs era uma amostra ambulante disso. Mas ele tinha esta clareza quando em seus discursos ele cita “conectar os pontos”, bem como o fato de que nossos computadores têm fontes bonitas hoje em dia, “com e sem serifa”, porque ele cursou aulas de caligrafia na universidade, enquanto buscava algo que lhe interessasse.
De fato, Epstein afirma que não é fácil substituir uma pessoa com esta amplitude por um grupo de pessoas com conhecimentos diversos. Provavelmente porque as conexões acontecem com muito mais facilidade em um cérebro do que se dependerem da comunicação entre pessoas. Mas Jobs também favoreceu este tipo de conexão. Em todos os prédios da Apple e da Pixar que ajudou a projetar, ele deliberadamente aplicou este conceito, criando corredores e pontos de encontro que forçassem as pessoas as se encontrarem na empresa.
Acho que meu pai lá no fundo também sempre acreditou nisso. Apesar de sua insatisfação com a falta de especialização, felizmente ele não resistiu em ser um generalista. Isso fez com que ele se adaptasse às diversas situações adversas que encontrou na vida e às oportunidades que surgiram em cada um destes momentos. Mais do que isso, fez dele uma referência importante para o generalista que eu mesmo me tornei. Como uma criança que perguntava meus infinitos porquês, tive a sorte de ter um pai que sabia de tantas coisas para responder a todos eles, muito antes de haver um Google para ajudar. Pude admirar suas várias habilidades, desde consertar brinquedos e eletrônicos a escrever e liderar grupos de pessoas movidas por um propósito comum. Na hora de escolher uma faculdade, ele sugeriu a engenharia, não pela especialização, mas porque “ela me abriria muitas possibilidades”. Seguindo seu conselho, escolhi a mais ampla das engenharias: a de Produção. E fui bastante realizado com a amplitude do que aprendi lá. De ergonomia a contabilidade gerencial, de gestão de pessoas a física quântica. Na hora de escolher o projeto de fim de curso, foi muito difícil achar algo onde eu pudesse encaixar o máximo do que eu havia aprendido, como eu queria. Acabei fazendo um plano de negócios meio diferentão (de um restaurante, que surpresa), bom o suficiente para eu me formar.
Em uma metáfora com animais, Epstein compara especialistas (sapos, que vêem o chão de perto) com generalistas (pássaros, que vêem tudo do alto) e afirma: o mundo precisa de mais pássaros. Eu concordo.
Obrigado pai, por ser uma referência para que eu me tornasse um como você.
Obrigado David Epstein, por nos encorajar.