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“Cultura é o que os funcionários fazem quando o chefe não está”. Assim se explica o que é cultura “popularmente” no mundo dos negócios. Uma cultura forte portanto pode ser a resposta para a sobrevivência de uma empresa para muito além da saída de seu fundador. Um fundador em especial, muito focado no pensamento de longo prazo, parece ter buscado fundar sua empresa como resposta à pergunta “o que dá a uma empresa uma vida longa?”
O escritor Jim Collins se propôs a responder a esta pergunta em seu livro “Built To Last”. Ele fez isso estudando os casos de 18 empresas com data de fundação média em 1897 e comparando-as com outras, normalmente concorrentes, que não obtiveram o mesmo sucesso. É incrível imaginar tantas empresas tão longevas, mas de fato, existem empresas com mais de 1000 anos de história para contar.
Em sua comparação Collins elenca 12 mitos que seriam supostas características de empresas de sucesso, todos desbancados por estes cases das empresas estudadas. Os mitos são que empresas de sucesso devem: nascer de uma grande idéia de produto (mito 1), ter um líder carismático (mito 2), buscar o lucro como fator de sucesso (mito 3), compartilhar um conjunto de valores “corretos entre elas” (mito 4), mudar constantemente em tudo (mito 5), jogar seguro (mito 6), ser o melhor lugar para todos trabalharem (mito 7), fazer planejamentos estratégicos complexos (mito 8), recorrer a um novo CEO de fora para fazer grandes mudanças (mito 9), focar em vencer os competidores (mito 10), fazer escolhas entre coisas importantes (A ou B) e não buscar tudo o que é realmente importante (A e B) (mito 11), e ser visionária através de uma “declaração de Visão” (mito 12).
Mas uma coisa me chamou especial atenção ao folhear novamente o livro de Collins. Uma das formas que ele explica o que diferencia as empresas que chama de visionárias é que elas buscam, ao invés de simplesmente buscar entregar valor, construir máquinas de entregar valor continuamente. Nas palavras de Collins, elas “constroem relógios ao invés de dizer as horas”. Porque isso me chamou a atenção? Porque a motivação de escrever este artigo era falar sobre o legado de um fundador que tomou a decisão de investir US$ 42 milhões para financiar a construção de um relógio para durar 10.000 anos. “O símbolo é importante por algumas razões. Se pensamos no longo prazo podemos realizar coisas que não conseguiríamos de outra forma” argumenta Jeff Bezos, fundador da Amazon.
Relendo cada um dos mitos que Collins desbanca reforcei minha impressão de que antes de se tornar um fundador em 1994 Bezos havia lido o livro em sua primeira edição, do mesmo ano. E de fato, este é o primeiro da sua lista de leituras recomendadas. Uma declaração intrigante, no entanto, afasta um pouco esta impressão: ele diz que as grandes empresas tem vida curta, de em média 30 anos, e que sua empresa também um dia a vai à falência. Talvez seja uma demonstração de humildade, ou uma tentativa de fazer sua empresa parecer normal, quando na verdade não é. “Nós somos genuinamente centrados no cliente, genuinamente orientados para o longo prazo e genuninamente gostamos de inventar. A maioria das empresas não é nada disso”. Assim, Bezos define a essência da empresa que fundou e conduziu até figurar entre as mais valiosas do mundo.
Jeff Bezos não é um típico fundador de empresa de tecnologia, em especial se comparado à realidade atual dos fundadores de startups, cuja maior parte sonha apenas em criar um unicórnio o mais rápido o possível. Brilhante desde criança, Jeff vinha tendo uma carreira executiva de sucesso, mas que podia ser considerada normal. Quando chegou a hora de empreender, entretanto, mostrou em cada uma de suas decisões, como era especial. Por exemplo: a obsessão pelo consumidor e não o lucro, foi o foco que escolheu na largada, desbancando ele mesmo o mito 3. É dono de uma risada muito peculiar, frequentemente ouvida em resposta a algo que não é claramente engraçado. Isso pode fazer ele parecer um líder carismático (mito 2), mas isso não é nem de perto uma unanimidade. “Você não pode entender isso errado”, diz Rick Dalzell, um ex-CIO da Amazon “Ele está te punindo.” Dalzell não é o único a ter críticas.
Bezos não criou uma empresa para ser o melhor lugar para se trabalhar para todos (o mito 7). De fato a empresa sofreu diversas ondas de críticas à sua cultura, sendo a mais recente no início da pandemia. Não é qualquer um que se adequa às peculiaridades da cultura da Amazon. O formato das reuniões, por exemplo, e a preparação exigida para liderar uma, dificultam a ambientação de qualquer novo funcionário. “Todas as reuniões na Amazon são assim, começamos lendo um documento. Em uma reunião de uma hora, reservamos de 15 a 20 minutos para isso e o tempo restante para discutí-lo” explica Daniel Mazini, ex-executivo da Amazon.
Este tipo de documento é necessário para defender projetos inovadores, mas de forma nenhuma é pensado para desestimulá-los. inovação (ou invenção como Jeff gosta de dizer) é a busca constante da empresa, nunca a segurança do status quo ou do resultado consistente a cada trimestre (mito 6). “Nunca recebi um e-mail do Bezos celebrando alguma realização de curto prazo, nem mesmo um resultado recorde. Bezos valoriza e encaminha e-mails de clientes que mostram o impacto profundo e emocionante da Amazon em suas vidas ou comunicando e celebrando as inovações da empresa que geram este impacto” comenta Mazini.
E para incentivar projetos inventivos de objetivos audaciosos, a cultura precisa incentivar a experimentação. O objetivo de ter documentos detalhados não é a busca por um complexo planejamento para não errar (mito 8). A companhia experimenta e erra bastante, mas assim foi pioneira em inovações de sucesso como a compra com 1 Clique, Alexa, Kindle, o Marketplace entre outras. Entre os erros, não tem como não lembrar do Fire Phone, “Pet Project” de Bezos que naufragou terrivelmente. Fazia todo sentido estratégico a Amazon entrar no mercado mobile, uma barreira significativa para se aproximar ainda mais da rotina do seu consumidor, mas em especial, para sua liderança no mercado de Voz, com Alexa . Mas a cultura “comeu a estratégia” no café da manhã. Bezos reconheceu o fracasso, como a empresa está acostumada a fazer. Existe até um padrão de documento chamado Correction of Error (COE) para reter e disseminar o que se aprende com fracassos na Amazon.
Esta humildade na cultura da companhia é mais um aspecto da personalidade de Bezos que Mazini ressalta. “Participei de duas reuniões com Bezos revendo o lançamento da Amazon no Brasil (…)” “Ele sempre é super humilde, sem problemas de ego, cheio de insights para todos.” “(…) mas sempre quer ouvir seu time. Ele nunca manda você fazer nada. Faz perguntas e dá feedback”. Este estilo inclusivo é mais uma forma de Bezos de disseminar a cultura e criar líderes dentro de casa. Bezos não é o gênio criativo, que Steve Jobs ficou famoso por ser. Ele criou uma cultura que não depende dele para inovar, nem radicalmente, nem incrementalmente. Nem para apresentar suas inovações para o mercado. Ao anunciar que deixaria a posição de CEO, Bezos enviou um e-mail para todos os seus mais de um milhão de funcionários ressaltando o incentivo à invenção (princípio inventar e simplificar) como a raiz do sucesso da empresa. Nunca a competição (mito 10) é tratada como um tema de relevância nesta empresa que insiste em inventar para superar a si mesma em atender melhor ao cliente.
A história da Amazon mostra que essa inventividade foi disseminada pela cultura da empresa com sucesso. O Amazon Prime foi proposto por Charlie Ward, um engenheiro da empresa. A AWS foi fruto da visão de Andy Jassy de criar um “sistema operacional” para a internet. Agora Jassy será o novo CEO da empresa. 27 anos depois de sua fundação, Bezos substituirá a si mesmo por um líder criado dentro da empresa e não vindo de fora (mito 9).
Para disseminar a cultura e fazer a empresa chegar onde chegou, Bezos foi firme à essência que já mencionei e não a um objetivo de médio prazo (mito 12). Mas ele consolidou a cultura em 14 “princípios de liderança”, que são públicos e usados intensamente desde o processo de seleção. Eles não foram copiados de nenhuma empresa (mito 4). Na verdade são pouco óbvios e às vezes até um pouco ambíguos entre eles. Estes princípios são invocados (normalmente em inglês) pelos próprios funcionários quando são observados em outros funcionários, como uma forma de feedback (“você demonstrou Learn and Be Curious hoje”), mas também quando não são demonstrados (“Acho que faltou insist in the high standards, vamos rever para subir o nível?”). Essas são mensagens comuns entre os funcionários nos corredores, reuniões e mesmo por e-mail. O fato de serem 14 e todos serem constantemente utilizados parece dar força ao argumento de que não se deve optar entre duas coisas muito importantes (mito 11). Os princípios de liderança sobrevivem há décadas o que faz com que sejam profundamente absorvidos e praticados. Collins explica que esta estabilidade da sua ideologia é mais uma das características das empresas visionárias, em oposição a uma mudança constante (mito 5). A mudança está nas inovações para atender ao cliente cada vez melhor.
Mergulhar fundo e demonstrar obsessão pelo cliente são alguns dos princípios esperados nas respostas aos lendários “question mark e-mails” de Bezos. Ao receber um e-mail no endereço jeff@amazon.com, quando uma questão que requer uma análise mais elaborada é identificada (originalmente por ele, mas hoje em dia com a ajuda de um time dedicado a isto), Jeff encaminha para a liderança responsável pela questão (head de unidade, country manager etc.) o e-mail do cliente adicionando apenas um ponto de interrogação no corpo. “Estes e-mails tem 2 a 3 dias para serem bem respondidos, com uma análise profunda, nunca criando uma thread longa de e-mails encaminhados, mas sim indo na causa raiz do problema” comenta Mazini. A mentalidade de dono também precisa ser demonstrada uma vez que em muitas outras culturas empresariais um e-mail como esse seria encaminhado entre vários departamentos, como uma forma de jogar a batata quente e apontar dedos.
O próprio fato de se chamarem “Princípios de Liderança” e não “Princípios Amazon” comunica a expectativa de um comportamento de liderança por todos os funcionários, não apenas os gestores. De fato, este nivelamento da companhia é praticado em reuniões “All Hands” onde todos tem voz. Mazini descreveu uma destas reuniões com Bezos em um estádio de basquete em Seattle: “ao final da reunião ele abre para perguntas, algumas são recebidas antes, mas também se forma uma fila e qualquer um ali pode fazer uma pergunta, sem filtros. Algumas ele mesmo responde, outras ele pede ao seu time que responda.” Bezos também se preocupa em comunicar ser firme, discordar e se comprometer outro valor essencial para se criar uma cultura de inovação, onde as pessoas não tenham medo de errar. “Ninguém nunca se machucou por fazer uma pergunta aqui” diz.
“Keep inventing”(…) “It remains Day 1”, escreve Bezos. Este espírito inventivo que ele incutiu na cultura pode ser para ele mesmo libertador. Ele inspira o sentimento de startup, como se todos os dias fossem o dia da sua fundação. Como empreendedor não consigo imaginar um sentimento mais empolgante. [Recomento muito assistirem este pequeno vídeo em que Jeff Bezos responde como é o “Day 2”].
Collins cita Richard Schickel em The Disney Version: “Acima de tudo, essa habilidade de construir, construir e construir – sem parar nunca, sem olhar para trás sem nunca terminar – a instituição… em última análise, a maior criação de Walt Disney foi Walt Disney [a empresa]”. O mesmo poderíamos dizer de Bezos, sua maior invenção foi a empresa em si. A empresa carrega a cultura. Ou será que foi carregada por ela?
Uma coisa é certa, a cultura da Amazon, como de poucas outras empresas não se limitou às suas fronteiras. Cultura é algo que também pode ser absorvido, ou copiado, pela sua influência. Quantas startups já ouvi fazerem menção ao “Day 1”, uma marca registrada da cultural da Amazon, como parte de suas próprias culturas… O Nubank, por exemplo, teve sua cultura muito inspirada por Bezos, segundo o próprio CEO David Velez, e usa constantemente a expressão “It is always Day 1”.
Bezos pode estar certo que sua empresa vai falir um dia. Ele parece ter mantido “Built To Last” como seu livro de cabeceira e ter feito tudo certinho para que a empresa dure mais de 100 anos. Sua substituição como CEO não mudará este destino. Mas se ele estiver certo, sua maior obra não terá sido a Amazon. Terá sido a obsessão pelo cliente, pelo longo prazo e pela invenção. Terá sido a cultura Amazon.